quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Trava bancária e ‘trava’ à recuperação judicial

Muito se tem discutido a respeito da validade da transformação do penhor mercantil de créditos em alienação (ou cessão) fiduciária, sendo certo que o entendimento da câmara especializada em recuperação judicial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) é pela possibilidade de se tratar a garantia como uma alienação fiduciária. Enquanto o Superior Tribunal de Justiça (STJ) não se pronuncia a respeito do tema, a aplicação desse entendimento vem causando preocupação aos operadores do direito, diante da inviabilidade da recuperação judicial de empresas que acabam tendo suas receitas comprometidas para o pagamento de dívidas bancárias prioritariamente.

Não é de hoje que se diz que mecanismos expeditos na recuperação de créditos conduz a uma maior e melhor mobilidade na sua concessão, inclusive com a redução do spread bancário. Isso se deu desde a entrada em vigor da lei da reforma bancária - a Lei nº 4.595, de 1964 - e das normas que lhe seguiram, como o Decreto-lei nº 70, que trata do crédito imobiliário, e o Decreto-lei nº 167, que trata do crédito rural, ambos de 1967; o Decreto-lei nº 413, sobre crédito industrial, e o Decreto-lei nº 911, sobre alienação fiduciária, ambos de 1969; a Lei nº 6.313, de 1975, que trata do crédito à exportação; a Lei nº 6.840, de 1980, sobre o crédito comercial; e recentemente, a Lei nº 10.931, de 2004, e a Lei nº 11.101, de 2005. Com a primeira lei, os bancos buscaram - e conseguiram - contornar uma série de normas e precedentes judiciais que, diziam, engessavam a recuperação e tornavam caros os créditos, como a forma de contagem dos juros e a possibilidade de execução de determinadas operações bancárias, como a abertura de crédito. Na segunda lei, abriu-se a possibilidade de modernizar a antiga concordata, efetivamente recuperando empresas.

Como não poderia ser diferente, os bancos interpretaram a lei para evitar que a ela estivessem sujeitos, de forma a recuperar o mais rápido possível seus créditos e os emprestar a outros, movimentando a economia e criando um círculo virtuoso - descartando aqueles que não conseguem se amoldar à eficiência exigida pelos mercados. Com isso, travestiram o penhor mercantil em “cessão fiduciária de créditos”, termo novo para um instituto jurídico que nunca existiu e nem existe. Mas, se considerarmos sua existência válida e juridicamente vinculante, como conjugar esse instituto - as travas respectivas, onde aquele responsável em alcançar a receita da empresa somente pode fazê-lo por intermédio de certo e determinado banco, de certo e determinado domicílio bancário - com a nova Lei de Falências e Recuperação das Empresas?

Ora, se a cessão fiduciária é válida e o contrato não se submete à recuperação da empresa, conforme o parágrafo 3º do artigo 49 da Lei nº 11.101, tudo é absolutamente legal, mesmo porque o exercício regular de um direito não implica qualquer desvirtuamento de conduta, como estabelece o artigo 153 do Código Civil. No caso, o fato de o banco reter os créditos e se pagar é uma atitude legalmente protegida.
Contudo, há de se ter presente que “ou o direito serve à ética ou não serve para nada. Direito que não tenha como finalidade última um ideal ético de justiça, nas palavras de De La Torre Rangel, perde a sua finalidade e passa a ser o direito do mais forte, ou do mais esperto”, conforme escreve o juiz Márcio Puggina. O que se protege, o que deve ser tutelado é o exercício regular de um direito, não o uso abusivo e indevido. Foi Miguel Reale que há muito apontou o abuso de poder quando o seu detentor exerce-o além do necessário e razoável à satisfação de seu direito.

E, sem dúvida, o desapossamento de receitas que, muitas vezes, são o pilar de sustentação à recuperação judicial, é um uso anormal do direito e, em assim sendo, o próprio sistema jurídico, ao sentir que “a força, ou intensidade, com que se exerce (o direito) é nociva ou perigosa à extensão em que se lança, concebe as regras jurídicas que o limitem, que lhe ponham menos avançados os marcos, que lhe tirem um pouco da violência ou do espaço que conquista”, conforme escreve Rui Stoco em “Abuso do Direito e Má Fé Processual”.

Não foi por outro motivo que o Código Civil em vigor trouxe uma explicitação de tal direito contraposto, estando positivado no artigo 187 que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Não é preciso alta indagação para ver que, ao direito do banco, outros são contrapostos, de forma que o exercício de um não arruíne os demais. O banco, com a cessão fiduciária, tem o direito de reter os valores recebidos de terceiros da conta da empresa e, assim, fora da recuperação judicial, vir a se pagar nos créditos alcançados. O que não pode -e que configura uma clara violação ao artigo 187 do Código Civil em vigor -, é que, com o exercício desse direito, venha a causar a derrocada da própria sobrevivência da empresa e de terceiros que dela dependem. Aplica-se ao espírito do novo artigo 187 o antigo precedente que diz que “a doutrina recente impõe ao juiz criteriosa ponderação de seus efeitos, no sentido de bem avaliar o que se chama prejuízo bilateral alternativo, principalmente em se tratando de atividade comercial, pois, como adverte Sérgio La China, em nota a sentença de tribunal italiano, os males da paralisação de uma empresa afetam fundamente direitos de terceiros, como os dos empregados, cujo direito ao trabalho constitui um bem em si mesmo”, conforme a decisão dada no Agravo de Instrumento nº 584.034.557, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), relatado pelo desembargador Galeno Lacerda em 1984.

Mas como interpretar o parágrafo 3º do artigo 49 da Lei nº 11.101 e o artigo 187 do Código Civil em vigor? Simples. Há de se operar de modo que sua implementação, que os créditos retidos, não levem à inviabilização da empresa e de sua recuperação. Qualquer entendimento contrário ou negará a garantia ou negará a possibilidade de recuperação à empresa. Há que se operar e ponderar que quaisquer dos direitos contrapostos não venham a tornarem-se nocivos ao outro. Não é por outro motivo, por exemplo, que a jurisdição jamais tolerou a penhora da receita de empresas em um percentual superior a 30%. Como, então, admitir a cessão fiduciária para tomar, não raro, 100% das receitas da empresa em recuperação judicial?

Fonte: Valor Econômico – 27.03.09

http://www.ibgt.com.br/blog/2009/04/trava-bancaria-e-%C2%B4trava%C2%B4a-recuperacao-judicial/

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