O Plenário do Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento do
Recurso Extraordinário 571.969, em que se discute indenização à Viação Aérea
Rio-Grandense (Varig), pela União, por danos sofridos pela empresa em
consequência da política de congelamento de tarifas vigente de outubro de 1985
a janeiro de 1992, instituída pelo Plano Cruzado.
A Varig alega que, tendo sido uma concessionária de serviço
público, o congelamento violou seu direito ao equilíbrio econômico-financeiro
do contrato, pois a obrigou a operar com prejuízos. A União, por sua vez,
sustenta que o princípio do equilíbrio econômico-financeiro do contrato,
previsto no artigo 37, inciso XXI, não é absoluto, devendo ser interpretado em
harmonia com a “política tarifária” prevista no artigo 175, parágrafo único,
inciso III, da Constituição.
A relatora, ministra Carmen Lúcia, deu razão à Varig, por
considerar que “toda a sociedade brasileira se viu submetida àquelas
disposições decorrentes da adoção das medidas e normas referentes ao plano
econômico, e não somente a autora, ora recorrida, mas na condição de
concessionária de serviço público, não poderia ela adotar qualquer providência
para se esquivar dos danos, não tem liberdade para atuar segundo a sua
conveniência, não tem como evitá-los ou conduzir-se de outra que não a forma
pré-determinada pelo próprio ente concedente, que, no caso, é exatamente o
autor daquelas medidas que compõem a política questionada.” Após o voto da
relatora, o julgamento foi suspenso pelo pedido de vista do ministro Joaquim Barbosa.
Em julgamento anterior sobre a mesma matéria (RE 183.180-4), de
1997, em que foram partes a Transbrasil e a União, o STF julgou favoravelmente
à empresa: “Prejuízo julgado comprovado pelas instâncias ordinárias e
decorrente de atos omissivos e comissivos do Poder concedente, causadores da
ruptura do equilíbrio financeiro da concessão, não abstratamente atribuível a
política econômica, normativamente editada para toda a população (Plano
Cruzado)”.
Independentemente da divergência entre as partes do julgamento
em curso, nenhuma delas contesta o “fato” de que a Varig foi uma concessionária
de serviço público. A partir desse consenso, o que se discute é a extensão do
princípio do equilíbrio econômico-financeiro do contrato.
A realidade, no entanto, é que, apesar das aparências, nem a
Varig nem as demais empresas aéreas foram ou são concessionárias de serviço
público, embora esta seja a terminologia adotada. Os institutos jurídicos são
identificados a partir do regime jurídico praticado e não da terminologia
adotada pelas partes. Para saber se a Varig era uma prestadora de serviço
público, é preciso, portanto, identificar a natureza jurídica de sua relação
com o Estado.
A chamada “concessão de serviços aéreos” não apresenta nenhum
dos elementos definidores de uma concessão de serviço público. Na época do
Plano Cruzado (1986), a Varig operava com fundamento no Decreto 72.898, de
1973, que lhe concedera o direito de executar o serviço aéreo de transporte
regular de passageiro, carga e mala postal. Nesse sistema, que vigora até hoje,
não há contrato propriamente dito, pois não há relação de contraprestação entre
as partes, mas a regulação de um serviço prestado por uma das partes ao público
em geral. A outorga do serviço independe de licitação, o que seria inconstitucional
caso se tratasse de uma concessão de serviço público, uma vez que o artigo 175
exige licitação para todas as concessões e permissões de serviço público. As
aeronaves, embora essenciais à prestação do serviço, não são bens reversíveis e
em geral sequer pertencem às próprias empresas aéreas, que as utilizam em
regime de leasing.
Mais importante, no que diz respeito ao tema do equilíbrio
econômico-financeiro do contrato, é que a chamada concessão de serviços aéreos
não confere à empresa o direito ou a obrigação de voar entre quaisquer
localidades. O direito de voar somente existe após a outorga de uma autorização
específica para cada linha a ser explorada. Essa autorização, denominada
Horário de Transporte (Hotran), estabelece horários, frequências, tipos de
aeronaves e oferta de assentos para cada linha. As empresas aéreas não
têm, nem nunca tiveram, portanto, qualquer obrigação de operar em condições
deficitárias. Podem, a qualquer tempo, comunicar ao poder público que não mais
operarão determinada linha e solicitar o cancelamento do respectivo Hotran.
Muita coisa mudou entre 1986 e 2013. A Lei 11.182, de 2005,
instituiu o regime de liberdade tarifária. A Agência Nacional de Aviação Civil
(Anac) não pode, portanto, tabelar os preços das passagens aéreas, como fez o
antigo Departamento de Aviação Civil (DAC) ao longo de quase toda sua
existência. A mesma lei também assegura às empresas a exploração de quaisquer
linhas aéreas, observada exclusivamente a capacidade operacional de cada
aeroporto e as normas regulamentares de prestação de serviço adequado, o que
desautoriza a política de contenção do “excesso de oferta” praticada pelo DAC,
que vedava a entrada de uma empresa em mercados já atendidos por outra.
Ao contrário do que acontece nos dias de hoje, em que prevalece
a livre iniciativa na exploração dos serviços aéreos, em 1986 as empresas
estabelecidas eram protegidas contra novas entrantes e os preços das passagens
aéreas eram controlados. Isso não autoriza a conclusão, no entanto, de que no
regime anterior se tenha praticado uma concessão de serviço público
propriamente dita.
A situação das empresas aéreas se aproximava do regime pelo qual
o serviço de táxi é prestado na maior parte das cidades. O poder público tabela
o preço cobrado do passageiro, mas não obriga ninguém a ser taxista. Caso o
preço tabelado se mostre insuficiente, o taxista pode descontinuar a prestação
do serviço, sem qualquer penalidade. Também pode contestar a legalidade do
valor tabelado e buscar sua alteração junto ao Poder Judiciário. O que não se
pode admitir é que, tendo continuado a operar, solicite depois uma indenização,
a título de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro de um contrato que,
em realidade, nunca existiu.
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