segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Reflexões sobre a vida prática do direito e a imprescindibilidade teórica de sua compreensão




A vida prática das carreiras jurídicas certamente impõe uma série de desafios ao profissional do direito, demandando interrelação entre as esferas do conhecimento teorético, filosófico, científico e o conhecimento adquirido com a velocidade de respostas reclamada pela realidade que, acumulado, se condensa na experiência particular e profissional.

Some-se a responsabilidade pessoal e social envolvida, de todas as ordens: moral, partrimonial, coletiva, filosófica, científica, inter e transgeracional, e, ainda, a vinculação às tradições, a serem renovadas em seu horizonte de sentido pelo espírito criativo que marca a temporalidade e as conjunturas do acréscimo das novas combinações de sentido inseridas no corpo de significados estabelecido.

A realidade se apresenta, assim, multicausal e multifacetada, razão pela qual conhecimentos nunca são exaurientes, bastantes para comportá-la, reduzindo-se, pela operação da linguagem, seus elementos a esboços sucessivos de suas mudanças, de onde se pode retirar sentido para efetivar alguns recortes e campos de ação. Essa característica, todavia, em hipótese alguma nega o conhecimento, sua busca e sua constante reelaboração.

Como uma imagem que emula o objeto, favorecem-se ou elementos gráficos, ou massas de luz, ou seja, um elemento constitutivo ou outro, tentando-se aproximar a representação do representado, sem, contudo, superar a diferença entre um e outro, ontologicamente intransponível.

Inobstante a inacaptabilidade absoluta, o fluxo do tempo social, feito pelos homens e pelo encadeamento de suas ações, imprime o dever de prosseguimento, razão pela qual a marcha segue adiante carregando as pessoas e as coisas, movendo-lhes e demandando-lhes movimento. Os sujeitos que conhecem não podem simplesmente parar a tentativa de conhecer, sob pena de inanição; essa premissa, ao menos, para a vida prática, que é o campo da produção da vida social e individual.

Somado a esse inevitável déficit de conhecimento, que não pode se estagnar ante o abismamento do real, uma dimensão sempre presente de ausência de apresentação, que se desvela aos poucos e parcialmente, havendo causas e motivos que, muitas vezes, sequer se consegue presumir, e que seriam determinantes para uma compreensão mais ajustada e sensível do ponto de enfoque em determinada situação.

Esse tateamento inevitável – no sentido de uma percepção de rugosidades mais ou menos grosseiras, mais ou menos vislumbráveis, cognoscíveis – se condensa com mais força do que um posicionamento de certeza e segurança.

Embora as expectativas todas ante o direito (aliás, uma de suas razões de ser) se manifestem em torno das certezas, epistemicamente o campo é repleto do orbe das dúvidas, razão pela qual a humildade e o equilíbrio são características de posicionamento primeiro ante o cenário de estímulos jurídicos.

Há mais perguntas do que respostas, e mais vazados do que preenchidos.

Para o prosseguimento do fluxo, um certo encobrimento dessa caraterística é necessário, revestindo-se de aparências que conformam e sustentam o processo de continuidade sem as interrupções da adequação da segurança. As construções, por força do tempo social, não podem ser feitas com o tempo que lhes deveria ser fornecido para construí-las com as acumulações devidas. Correções e aproximações são necessárias.

A continuidade imperativa implica em cortes mais ou menos abruptos que tocam as coisas adiante, e a função normativa prévia dá os contornos que viabilizam o desdobramento deste imenso edifício em reiterada construção que se condensa no fenômeno nominado direito.

Por isso tudo, o cotidiano criativo se reveste de uma série de dimensões de habilidades para lidar com essa dinâmica própria. A construção dos casos a serem levados ao Juízo e a administração dos feitos quando em curso requerem uma diligência constante com aspectos da realidade e do direito, sem o que as coisas se perderiam no tempo e no espaço.

Os cuidados, assim, dependem do argumento certo, da hora certa de se posicionar, da estratégia mais adequada para a tutela do direito subjetivo em jogo. Ao mesmo tempo, muitos movimentos se fazem ao exterior das tentativas de controle, e a tentativa de dirigismo legítimo destes procedimentos reforça o esforço da marcha adiante, sendo o resultado final a forma consequente deste variado ritmo de forças diversas. Misturam-se intenção e acaso, que é o oculto da intenção alheia desconhecida.

O contato inicial com o problema, conforme relato e documentação, insere novas lâminas de sentido, e inicia o tônus investigativo que se projeta sobre o corpo normativo, firmando-se por meio da busca dos textos e nos textos, concatenando-se feixes de leitura e de redação.
O desvelamento legal, as interações dos pensadores e intérpretes da lei, a vinculação dos preceitos e as soluções jurisprudenciais formam um universo na busca de explicação e organização dos fatos similares envolvidos em torno do campo semântico das categorias.

As camadas de linguagem e interpretação se acumulam em contextos de comunicação, firmando-se compreensões e interagindo diferentes agentes sociais na tentativa da consecução do objetivo final do resultado prático do processo e obtenção dos direitos pretendidos ou, ainda, resolução adequada da conjuntura destes.

A administração do processo, com diferentes interações com os órgãos incumbidos, assim, se apresenta como um complexo arranjo em que transitam diferentes pessoas cumprindo missões igualmente importantes para o atingimento final. Conjuntamente a isso, as relações interpessoais marcando também o movimento interior e exterior do processo, envolvido na vida social dos agentes profissionais.

É nesse complexo de pessoas, linguagem, leituras e tempos cruzados e alinhavados, em sucessivos influxos de passado e futuro, que o direito se constrói, e que a vida prática não pode prescindir dos aportes teóricos. Nos jogos de luzes e sombras, a reflexão e o olhar preocupado traçam o tateamento de respostas, sempre provisórias, sempre parciais, mas inevitavelmente necessárias para a continuidade da construção da vida.

Eliseu Raphael Venturi

Advogado em Curitiba, especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná e mestrando em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR

Nenhum comentário:

Postar um comentário