Pode-se compreender o racismo pela internalização de imagem
desfavorável de si mesmo. A inferiorização e a diferenciação presentes
no fenômeno do racismo vêm analisados por Maria Palmira da Silva.
Relaciona a identidade pessoal com a identidade social, concebendo-a
como produto social resultante de situação de conflito “envolvendo
discriminação, exclusão social, exploração e opressão individual ou
coletiva” (SILVA, 2002, pág. 55).
O direito à imagem vem
estabelecido pelo art. 5º, incs. V, X e XXVIII da Constituição Federal
de 1988 (DAVID ARAÚJO, 1996, pág. 19). Resta como sugestão de pesquisa o
direito à imagem de grupo. A Convenção para Prevenção e Repressão do
Crime de Genocídio, Decreto nº 30.822/1952, art. 2º b), considera
genocídio o “dano grave à integridade física e mental de grupo”.
A
força do racismo e o grau de tensão social, surgida por meio da idéia
de raça, “depende da peculiaridade das relações sociais de cada
sociedade” (SILVA, 2002, pág. 54).
A consciência racial
desenvolve-se nas experiências da criança no núcleo familiar (SILVA,
2002, pág. 57). Acerca do sentido social da cor de pele para a criança,
do fato da consciência relacionar-se à experiência estatui a autora em
estudo:
“A atribuição de significado social às propriedades
físicas, desde a infância, resulta da compreensão que, paulatinamente,
vai se adquirindo em face dos sinais de aceitação ou de rejeição
implícitos nas atitudes e nas condutas dos adultos” (SILVA, pág. 57 apud
BERGER & LUCKMAN, 1977).
A consciência racial antecede à
experiência de discriminação racial e ao engajamento pessoal nas lutas
de combate ao racismo, ao exame de narrativas diante de situações
concretas de racismo. Destaca o engajamento e também o medo do confronto
aberto, a apatia e a paralisia.
João Baptista Borges afirma a
identidade como resultado de “jogo contrastivo” sobre a construção da
auto-imagem do negro no Brasil, na avaliação do não-negro do negro e do
negro em relação ao próprio negro (PEREIRA, 2002, pág. 66).
Para
este autor a identidade constitui teoria surgida na semiologia,
apropriada pelas ciências humanas, conceito utilizado fora da vida
acadêmica "(...) como rótulo mágico e simplificador, para explicar as
características do povo brasileiro e dos segmentos étnico-raciais que o
compõem" (PEREIRA, 2002, pág. 65).
Explicita a identidade racial
como construção histórica. Tratam-se das interpretações social e
cultural às características biológicas a criar a identidade simbólica de
grupo (PEREIRA, 2002, pág 65). Refere o autor os momentos históricos da
identidade negra no Brasil: período abolicionista, semana de arte
moderna, Frente Negra Brasileira e Movimento Negro Unificado, afirmando o
negro estar procurando construir identidade positiva de grupo com
inspiração na classe média emergente, com conquista de espaços sociais,
antes vedados ”isto é, o negro quer ir além dos espaços que
historicamente a sociedade brasileira lhe tem reservado: futebol,
carnaval, música, escola de samba, terreiros religioso" (PEREIRA, 2002,
pág. 69).
Rechaçam Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant a
“transfiguração conceitualizada” (BOURDIEU & WACQUANT, 2002, pág.
20) das teorias das relações raciais estadounidenses. O “imperalismo
cultural” universaliza os particularismos associados a uma tradição
histórica singular “tornado-os irreconhecíveis como tais” (BOURDIEU
& WACQUANT, 2002, pág. 15).
Andreas Hofbauer pondera que
ninguém poder prever o desdobramento da implementação dos programas de
ação afirmativa, se por um lado, fortalecer-se-á a sensibilização e
conscientização para a discriminação, ou se por outro, impulsionará o
acirramento com atos discriminatórios (HOFBAUER, 2006, pág. 50).
Este
autor contribui para a compreensão da discriminação no Brasil, alerta
para o perigo da essencialização das categorias “branco” e “negro”,
mostra os termos “raça”, “branco” e “negro” vinculados a tradições
acadêmicas de estudos de relações raciais, em exame do conceito
sociológico de raça, a render trabalhos empíricos com dados
estatísticos. O papel dos pesquisadores e militantes negros dos E.U.A e
de fundações norte-americanas para o fortalecimento de idéia
essencializada da diferença ainda não foi estudado “por constituir um
tema bastante delicado” (HOFBAUER, 2006, pág. 17).
Há por um lado o
desmascaramento do mito da democracia racial, porém, por outro, esta
postura teórico-metodológica estadounidense não compreende “a complexa
questão das identidades” (HOFBAUER, 2006, pág. 18) e distorce o fenômeno
do racismo.
De Antônio Sérgio Guimarães, tem-se a utilização de
“raça” como instrumento acadêmico e político de luta por políticas
compensatórias. Considera-se a grande quantidade de termos de cor:
moreno claro, moreno escuro, moreninho, marrom. Trata-se “a variedade e o
uso flexível de denominações de cores de pele usadas no cotidiano” como
expressão de “falta de consciência” (MOURA, 1998, pág. 63 apud
HOFBAUER, 2006, pág. 21).
Sobre a categoria moreno, Yvonne Maggie:
“(...) é como uma chave para se falar de cor e raça sem falar de cor e
raça, pois moreno contém em si mesmo tanto cor, como ausência de cor
(...)” (MAGGIE,1996, pág. 231-232 apud HOFBAUER, 2006, pág. 38).
Não
é demais lembrar que o conceito biológico de raça, descartado pela
antropologia e pela genética, contribuiu para a “naturalização” da
desigualdade socialmente herdada da escravidão.
Para Andreas
Hofbauer a força do fenômeno racismo provém do entrelaçamento de
concretudes e ideários, pela “maneira como concretudes e ideários se
entrelaçam” e como desigualdade real e diferença simbólica “são
produzidas, articuladas e mescladas pelos atores sociais” (HOFBAUER,
2006, pág.46).
Em referência a M. Frye Jacobson, este autor indica
haver uma epistemologia legal de raça (JACOBSON, 1998, pág. 226 apud
HOFBAUER, 2006, pág. 26).
Para Montagu o termo “raça” ganha força
para explicar e justificar as diferenças de contextos sociais
específicos a dividir, segregar as pessoas em classes e castas (MONTAGU,
1997, pág. 43 apud HOFBAUER, 2006, pág. 28). Propõe-se substituição
pelo termo grupo étnico, devendo a antropologia, para este autor, também
ater-se as questões de relações de poder, desigualdade socioeconômica e
discriminação.
A aplicação da crença na existência de cultura ou
identidade particular, como essência de povo, pode surtir efeitos
semelhantes aos processos de discriminação e exclusão. Vários
pesquisadores criaram neologismos para essa situação. Mais uma
transcrição de Andreas Hofbauer:
“Balibar criou o conceito de
‘racismo sem raças’, e usa também o termo ‘neo-racismo’ (este último tem
sido usado também por Castles); Fanon, e recentemente também Hall, fala
em ´racismo cutlural’; Essed cunhou o termo ‘etnicismo racial’; e
Taguieff propôs o conceito ‘racismo diferencial’ (ZERGER, 1997, pág. 84
apud HOFBAUER, 2006, pág. 44).
Neste marco de compreensão do
racismo à brasileira, Roberto Da Matta chama atenção, à diferença do
“sistema racial bipolar dos E.U.A, que define o ´mestiço´ como negro”,
no Brasil, as relações sociais são dominadas por ideologia de mistura e
ambigüidade, “faz com que o mestiço simbolize ´integração´” (DA MATTA,
1997, págs. 71-72 apud HOFBAUER, 2006, pág. 37).
Roberto Da Matta
assume sermos uma sociedade hierarquizada e dividida. Afirma o
preconceito ser contextualizado. Contrapõe à tradição igualitária
anglo-saxã, à moralidade individualista moderna, o mulato: essa
possibilidade de relação.
“É que primeiramente devemos ressaltar
como as sociedades igualitárias engendraram formas de preconceito muito
claras, porque sua ideologia negava o intermediário, a gradação e a
relação entre grupos que deveriam permanecer separados, embora pudessem
ser considerados teoricamente iguais. (...) O fato contundente de nossa
história é que somos um país feito por portugueses brancos e
aristocráticos, uma sociedade hierarquizada e que foi formada dentro de
um quadro rígido de valores discriminatórios. (...) A mistura de raças
foi um modo de esconder a profunda injustiça social contra negros,
índios e mulatos, pois, situando no biológico uma questão profundamente
social, econômica e política, deixava-se de lado a problemática mais
básica da sociedade” (DA MATTA, 2000, pág. 46).
Kabengele Munanga
conceitua raça, no sentido sociológico, “como categoria social de
exclusão”. Conceitua etnia, comunidade religiosa, comunidade
econômica/classe, comunidade política/nação, assinalando as práticas
racistas de rejeição verbal, evitação e discriminação – negação de
igualdade de tratamento e agressão física.
Defende o indigitado os
direitos de participação política e econômica, sem deixar de atentar
para os critérios de mobilidade social da sociedade capitalista. “O
racismo nunca foi um fenômeno estático e, no seu dinamismo atual,
recorre com freqüência à hipervalorização das diferenças ou das
identidades culturais para reestruturar-se e reformular-se” (MUNANGA,
1990, pág. 54).
O STF decidiu, no HC 86.452, ser imprescritível
ofensa de conteúdo racial e, no HC 82.424, pela condenação por idéia
anti-semita (CYFER, 2009, pág. 361).
Daniel Sarmento pensa a
ofensa ao princípio da isonomia através da discriminação de fato - por
meio de estatística e por meio da aplicação ou desaplicação da lei pelas
autoridades, e através da discriminação indireta - por meio da teoria
do impacto desproporcional, recolhida da Suprema Corte dos E.U.A e da
Corte Européia de Justiça (SARMENTO, 2008, págs. 70-77) .
Para
Norberto Bobbio o racismo surge “como atitude de desconfiança para com o
diferente” (BOBBIO, 1998, pág. 124). Para este autor podemos corrigir o
racismo e, “em hipótese extrema, eliminá-lo” por meio da compreensão de
suas razões (BOBBIO, 1998, pág. 123). O preconceito provoca opiniões
errôneas. A discriminação está em partir de um juízo de fato para dele
derivar um juízo de valor odioso de pretensa superioridade de grupo
(BOBBIO, 1998, págs. 107-109).
Pode-se reproduzir Boaventura de
Sousa Santos: “Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos
inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando nossa igualdade
nos descaracteriza” (SANTOS, 2003, pág. 56 apud PIOVESAN, 2008, pág.
31).
Conclui-se, com um parâmetro normativo. O Brasil assinou a
Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Étnico-Racial, com promulgação pelo Decreto nº 65.810/69,
com reconhecimento de competência do Comitê Internacional para
Eliminação da Discriminação Étnico-racial para receber e analisar
denúncias, através da promulgação do Decreto nº. 4.738/03.
Constitui
dever do Estado brasileiro garantir os direitos de participação
política, conforme o art. 5º, “c”, o “direito de tomar parte do
governo”, assim como na “direção dos assuntos públicos em qualquer
nível”, e de “acesso em igualdade de condições às funções públicas”
(Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Étnico-Racial, Decreto 65.810/69).
A injúria
qualificada por discriminação vem disciplinada pela Lei nº. 12.033/94.
Em matéria de intolerância, devem ser mencionadas a Lei nº. 7.716/89 e a
Lei nº 9.459/97. Constitui crime de tortura constranger alguém com
emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou
mental em razão de discriminação racial ou religiosa , art. 1º, I, c) da
Lei Nº 9.455 de 7 de abril de 1997, definidora dos crimes de tortura, e
o art. 24 da Lei 12.288 de 2010, Estatuto da Igualdade Racial,
reconhece o direito à liberdade religiosa de matriz africana, em reforço
ao art. 208 do Código Penal.
Konstantin Gerber
www.conjur.com.br
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